As três dimensões da consciência, segundo B. Alan Wallace
B. Alan Wallace é conselheiro do Paz & Mente para assuntos relacionados à ciência contemplativa. É um dos mais prolíficos escritores e tradutores do budismo tibetano no Ocidente e busca continuamente formas inovadoras para integrar práticas contemplativas budistas com a ciência ocidental para que se possa avançar no estudo da mente. É o fundador do Santa Barbara Institute for Consciousness Studies.
O texto que trazemos aqui, retirado de sua obra “Felicidade Genuína”, é um exemplo disso. Confira:
“Com grande compaixão, aspiramos libertar todos os seres do sofrimento e de sua fonte, e com o espírito de despertar, procuramos uma maneira de cumprir essa aspiração. Para dar a esta compromisso uma base firme na realidade precisamos entender a natureza da consciência. Aqui está um modelo de três dimensões da consciência, cada uma das quais pode ser testada através da experiência. São elas:
1. A psique
2. A consciência do substrato
3. Consciência primordial
A psique é o domínio da mente estudado por psicólogos. Inclui toda a gama de processos mentais conscientes e inconscientes que são condicionados pelo corpo, especialmente pelo cérebro, em interação com o ambiente. Esses processos são específicos para nosso gênero, etnia, idade e assim por diante. Uma das principais razões para se interessar pela psique é aprender a distinguir quais de nossos processos mentais são propícios ao nosso bem-estar e quais não são. A psicologia budista é experiencial e pragmática, incentivando-nos a responder a essas perguntas, observando nossas próprias mentes e as influências de estados e atividades mentais específicas. À medida que nossas habilidades introspectivas melhoram, lançamos uma luz cada vez mais clara em um domínio que antes era obscuro.
Enquanto os contemplativos budistas sondavam as origens da psique, descobriram que ela emerge de uma dimensão subjacente chamada consciência do substrato: um continuum individual de consciência que se prolonga de uma vida para a outra, armazenando memórias e outros traços de caráter pessoal ao longo do tempo.
Comparando essa visão com a da neurociência atual, sua psique é condicionada por sinapses cerebrais, neurotransmissores e outros processos neurais, mas não está localizada no cérebro e também não uma propriedade emergente do cérebro e sua interação com o ambiente, como neurocientistas agora acreditam.
A existência da consciência do substrato não é simplesmente uma especulação metafísica, mas uma hipótese que pode ser posta à prova da experiência contemplativa. Esta não é uma tarefa fácil e não é uma hipótese que possa ser testada estudando apenas o cérebro. É um desafio que pode ser enfrentado por contemplativos experientes que já alcançaram a quietude meditativa. Com essa prática, você volta sua atenção para um poderoso feixe de consciência refinada, focada e luminosa, cortando como um laser os estratos turbulentos e superficiais de sua psique. À medida que a obscuridade e as perturbações dos pensamentos discursivos se acalmam, o espaço da mente se torna cada vez mais transparente. Muitos contemplativos budistas do passado e do presente afirmam que você pode explorar o substrato, acessando sistematicamente memórias de vidas anteriores que foram impressas neste continuum de consciência. Isso pode incluir lembranças de sua casa, bens pessoais, amigos, meios de subsistência e a maneira de sua morte.
A consciência do substrato também pode ser inferida indiretamente com base em pesquisas feitas em crianças que relatam memórias válidas de vidas passadas e até mostram características físicas, marcas de nascença e afins, que remontam a suas vidas anteriores. As investigações científicas nesse campo foram realizadas pelo psiquiatra Ian Stevenson, que resumiu quarenta anos de pesquisa em seu livro recente, Where Reincarnation and Biology Intersect. Assim, além dos relatos de contemplativos, parece haver bases científicas indiretas para afirmar a existência de uma consciência de substrato individual que se prolonga de uma vida para outra.
A aspiração do espírito de despertar começa a parecer viável quando consideramos a possibilidade de nosso amadurecimento espiritual continuar de uma vida para a outra. Se nossa existência estivesse confinada apenas a esta vida, a bodichita seria um mero vôo de fantasia, porque somente nesta vida não temos chance de aliviar o sofrimento de todos os seres. Porém, se cada um de nós participa de um fluxo de consciência que flui para um futuro sem fim, há tempo de sobra para curar os outros. O Dalai Lama frequentemente cita este versículo de Um Guia para o Modo de Vida do Bodhisattva: ‘Enquanto o espaço permanecer, enquanto os seres sencientes permanecerem, por quanto tempo eu permaneço para aliviar o sofrimento do mundo’.
Além do domínio da consciência do substrato, contemplativos de várias tradições ao redor do mundo e ao longo da história descobriram uma terceira dimensão da consciência, chamada no budismo de consciência primordial. Isso transcende as construções conceituais de espaço e tempo, sujeito e objeto, mente e matéria, e até existência e inexistência. Essa dimensão da consciência é inefável e inconcebível, mas, como na consciência da psique e do substrato, ela pode ser explorada experimentalmente por meio da meditação. Aqui a quietude meditativa sozinha não é suficiente. Isso requer treinamento rigoroso em insight contemplativo, ou vipashyana, pelo qual rompemos todos os conceitos, construções e o ‘endurecimento de nossas categorias’, a tal ponto que podemos nos estabelecer na natureza vazia e luminosa da própria consciência.
Há alguns anos, perguntei ao meu falecido amigo e colega Francisco Varela, um destacado neurocientista, se essa visão budista é compatível com a compreensão científica moderna do cérebro. Ele respondeu, brincando, que essa era uma ‘questão brutal’, pois é de fato compatível, mas praticamente toda pesquisa neurocientífica é realizada com a suposição da opinião contrária: de que a mente nada mais é do que uma função do cérebro. E enquanto os cientistas cognitivos limitarem suas pesquisas à psique e suas correlações com o cérebro, suas suposições materialistas permanecerão incontestadas e não testadas.
Os budistas chamam esse nível mais profundo de consciência primordial de nossa natureza búdica, e são apresentadas três razões pelas quais a natureza búdica está presente em todos os seres. A primeira razão é que o dharmakaya, a consciência de todos os budas, permeia todo o espaço de tempo. A segunda razão é que, na natureza última da realidade, não há distinção entre seres iluminados e não iluminados. Por fim, somos da mesma natureza que os iluminados. A terceira razão é que todos nós temos a capacidade de alcançar a iluminação de um buda. A tradição budista mahayana declara que é essa natureza búdica que é a fonte do nosso desejo de alcançar a felicidade genuína, ou nirvana. Por natureza, essa dimensão da consciência é “brilhante” e “originalmente pura”, mas parece impura quando é obscurecida pelo apego, ódio, ilusão e ideação compulsiva. Repleto das qualidades do estado de Buda, ele está presente primordialmente desde os tempos sem começo e, no entanto, também deve ser aperfeiçoado através do cultivo adequado. A natureza búdica é a natureza imaculada e verdadeira da consciência, à qual nada precisa ser acrescentado e da qual nada precisa ser retirado, mas precisa ser separada das impurezas que a acompanham, assim como o minério de ouro precisa ser refinado para trazer à tona e manifestar a pureza intrínseca do ouro. No Sutra Lankavatara, o Buda declara que a natureza búdica ‘mantém dentro dele a causa do bem e do mal, e por meio dele todas as formas de existência são produzidas. Como um ator, ele assume várias formas’.
Se pudermos nos esforçar para perceber nossa natureza búdica ao longo de várias épocas da vida, primeiro purificando nossa psique, depois explorando nossa consciência do substrato e finalmente canalizando as profundezas da consciência primordial, então a grande aspiração da bodichita parece viável.”