"Ciência Contemplativa: O que é?", por B. Alan Wallace

Texto publicado originalmente no site do Instituto de Ciências Contemplativas do Brasil.

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B. ALAN WALLACE

A simples ideia de propor uma disciplina com o nome de “ciência contemplativa” pode despertar suspeita entre aqueles que prezam as conquistas da ciência, as quais, em parte, devem-se justamente à separação de seu método de investigação de toda e qualquer vinculação religiosa. Essa estranheza tem uma forte base histórica e, portanto, deve ser levada a sério. Mas os princípios da contemplação e da ciência também têm bases históricas que sugerem uma possível reconciliação e até mesmo uma integração das duas abordagens.

O termo latino contemplativo, que deu origem à palavra “contemplação”, corresponde à palavra grega theoria. Ambas referem-se a uma total lealdade para com o revelar, esclarecer e tornar manifesta a natureza da realidade. O objetivo central delas é a busca da verdade e nada menos que a verdade. De acordo com o teólogo cristão Josef Pieper, o principal elemento envolvido no conceito da contemplação é a percepção silenciosa da realidade.[1]Essa, segundo ele, é uma forma de conhecimento alcançada não por meio do pensamento, mas da visão. “A intuição é, sem dúvida, a forma perfeita de conhecer. Porque a intuição é o conhecimento do que está realmente presente; a analogia com ver com os sentidos é exata”.[2] Mas diferentemente do conhecimento objetivo, a contemplação não se dirige meramente para o seu objeto; ela já repousa nele.

Embora o termo “ciência” tenha sido considerado unicamente no âmbito da exploração de fenômenos objetivos, físicos e quantitativos – a ponto de apenas eles serem considerados reais por alguns cientistas – existem fundamentos para se considerar a ciência num contexto mais amplo. O Webster’s Ninth New Collegiate Dictionary define método científico nos seguintes termos: “Princípios e procedimentos para a busca sistemática de conhecimento envolvendo o reconhecimento e a formulação de um problema, o levantamento de dados por meio de observação e da experimentação, bem como a formulação e comprovação de hipóteses”. Não há nada nessa definição que impeça a possibilidade de o indivíduo fazer da perspectiva da primeira pessoa observações de fenômenos mentais e sua relação com o mundo como um todo. Exatamente como os cientistas fazem observações e conduzem experimentos com a ajuda de recursos tecnológicos, os meditadores vêm há muito tempo fazendo suas próprias observações e conduzindo seus próprios experimentos fazendo uso do refinamento de suas capacidades de atenção e do exercício da imaginação. Em princípio, não existe, portanto, nada que seja fundamentalmente incompatível entre a contemplação e a ciência. Mas o peso da história continua se opondo a qualquer colaboração proveitosa entre as duas.

A força que a ciência adquiriu ao se divorciar da religião, e mais recentemente da filosofia, impôs um pesado tributo a suas sociedades hospedeiras. É importante observar que o século XX, que gerou o mais vasto conhecimento científico de todo o curso da história da humanidade, também testemunhou a maior desumanidade para com o homem, como também a maior degradação do meio ambiente e dizimação de outras espécies. A expansão do conhecimento científico não trouxe nenhum crescimento comparável em termos de ética e virtude. Em consequência disso, a sociedade moderna adquiriu mais conhecimento e poder, mas não mais sabedoria e compaixão.

A ciência é vista há muito tempo com orgulho, e não sem justificação, como sendo “isenta de valores”. Tenho encontrado frequentemente cientistas que falam do puro prazer da descoberta, sem qualquer relação com as possíveis aplicações práticas de suas pesquisas. Mas não podemos ignorar o fato de a maior parte das pesquisas científicas serem atualmente financiadas por instituições públicas e privadas que têm em mente objetivos específicos. Elas querem bons retornos sobre os investimentos que fazem. Com a moderna dissolução da fusão medieval de religião, filosofia e ciência, ocorreu uma desintegração semelhante na busca da felicidade genuína, verdade e virtude – três elementos essenciais que dão sentido à vida. A ciência contemplativa que tenho em mente procura reintegrar a busca desses três elementos por meios totalmente empíricos, sem submissão dogmática a qualquer sistema de crenças, seja de caráter religioso ou não.

Para explorar essa possibilidade, vamos antes rever os elementos essenciais da felicidade genuína, da verdade e da virtude que devem ser integrados.

Desafios a uma ciência contemplativa

Um dos mais importantes desafios a serem enfrentados pela ciência contemplativa é naturalizar a consciência sem reduzi-la a uma propriedade emergente ou a uma função da matéria. Isso requer a exploração de alternativas ao dualismo cartesiano, que tem se mostrado infrutífero, e ao materialismo científico, que restringe seriamente nosso entendimento da natureza e dos potenciais da consciência.

Estamos também diante do desafio de rever os fundamentos da natureza humana. Se nos baseamos unicamente na física para compreender nosso lugar na natureza, a existência é reduzida à condição de robô. Se nos baseamos apenas na biologia, somos reduzidos à condição de animais. A psicologia contemporânea vigente tem amplamente se restringido a estudar as mentes humanas normais e subnormais e definido a identidade humana dentro dessas limitações. O budismo vê a nossa existência em termos de três dimensões: a natureza humana qualificada pelo corpo humano e pela psique, e nossa natureza enquanto seres sencientes, qualificada pela consciência-substrato individual e pela consciência primordial, que transcende todas as limitações da vida humana e da existência senciente. O cristianismo afirma que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, o que provê uma base ao desafio colocado por Jesus para que cada pessoa seja feita como o Pai no céu é perfeito. Mas ele também considera a natureza humana como pecadora e, portanto, necessitada de redenção por Cristo.

Nos termos de nossa visão de realidade como um tudo, argumentei que os princípios fundamentais da ciência moderna são válidos com respeito ao mundo físico objetivo destituído de percepção subjetiva enquanto são ignoradas as implicações da consciência refinada (como, por exemplo, por meio da prática de samâdhi). Esse desprezo pelo papel da consciência pode parecer insignificante, muito à maneira com que as suposições básicas da mecânica clássica parecem válidas enquanto a matéria estudada é grande e não se aproxima da velocidade da luz. Mas quando a consciência é altamente refinada, torna-se necessário falar de estados “relativos” de consciência (assim chamados porque sua relevância para o mundo físico se torna óbvia); as suposições materialistas atuais podem se provar falsas.

O refinamento da consciência por meio da contemplação e a investigação científica das implicações de tais estados de consciência podem revolucionar explicitamente as ciências cognitivas e revolucionar implicitamente a ciência natural como um todo, a qual está grandemente baseada nos pressupostos do materialismo do século XIX. Isso irá requerer uma profunda investigação do poder causal da consciência, e especialmente dos estados relativos de consciência, no mundo natural. Isso, por sua vez, poderá gerar uma ciência do mundo da experiência que tomará o lugar de nossa atual ciência do mundo puramente objetivo, desprovido de subjetividade.

Os ideais de vida contemplativa quase desapareceram no Ocidente moderno, mas não precisamos buscar fora de nossa cultura para redescobri-los. Na verdade, não precisamos ir nada além de São Tomás de Aquino, cuja influência no cristianismo ocidental dificilmente pode ser superestimada: “É requisito para o bem da comunidade humana que existam pessoas que se dediquem à vida contemplativa”.[3]  O próprio propósito da civilização é a busca da felicidade genuína, da verdade e da virtude, e a vida contemplativa é inteiramente focada nesses propósitos. Acredito que era isso que São Tomás de Aquino tinha em mente quando escreveu:

“A vida política como um todo parece estar ordenada com vista à obtenção da felicidade contemplativa. Porque a paz, que é conquistada e preservada em virtude da atividade política, coloca o homem em condições de se dedicar à contemplação da verdade.”[4]

Fonte:

Wallace, B. Alan. Ciência Contemplativa: onde o budismo e a neurociência se encontram. São Paulo: Cultrix, 2009. Digitação e revisão: Lama Jigme Lhawang

[1] Josef Pieper, Happiness and Contemplation. Trad. Richard e Clara Winston (Chicago: Henry Regnery, 1966), 73.

[2] Ibid., 73-4.

[3] São Tomás de Aquino, Sentences de Peter Lombard 4d, 26, 1, 2. Citado em Pieper, Happiness and Contemplation, 96.

[4] São Tomás de Aquino, Commentary on Aristotle’s Nichomachean Ethics 10, 11; no. 2101. Citado em Pieper, Happiness and Contemplation, 94.