Fundamentos para o Treinamento da mente: Lojong, por Jampal Norbu

Primeiro eu gostaria de explicar um pouco melhor por que os budistas estão tão focados com a mente em si.

E isso (a mente), posso dizer que não é algo que preocupa apenas os budistas, mas é algo relevante a todas as pessoas. Quero compartilhar os pilares do treinamento da mente no budismo (o Lojong), e como isso tem sido ensinado por mais de mil anos (ou talvez dois mil e quinhentos anos), que era a época do Buda na Índia. Estou neste momento na Índia, apreciando essa nobre terra chamada Índia, onde o Dharma foi apresentado pela primeira vez.

Então vale a pena para nós voltarmos aos pilares – os fundamentos do budismo, porque é justamente nesses fundamentos (pilares) onde podemos perceber como o budismo é relevante, para as pessoas no geral, independentemente das suas aspirações pessoais, ou se são meditadores, artistas, ou um pensador criativo, ou uma pessoa mais auto reflexiva. O ponto é, para todas as pessoas que queiram ser pessoas melhores no mundo.

 

Então a fundação - os fundamentos do budismo, claro que levam em conta todos estes pontos e o treinamento da mente, de um modo geral, procura trazer um pouco da autoconsciência e o pensamento crítico, ambos parte dos fundamentos da filosofia budista. Portanto, há muita fé, devoção à tradição, às práticas, mas, ao mesmo tempo, também há uma investigação profunda pessoal que também deve vir, em primeiro lugar sempre.

 Eu mesmo estou num país budista agora, ou que costumava ser um país muito forte no budismo. O Budismo ainda é muito forte aqui - a terra nobre da Índia. Mas eu também venho dos Estados Unidos, do Ocidente, e há uma vantagem em vir do Ocidente, no sentido de que temos aqui no Ocidente um sistema educacional muito forte e esse sistema educacional nos ensina o pensamento crítico e com isto, compreender nossas próprias motivações, razão para viver de uma determinada maneira ou adotar um certo tipo de estilo de vida.

Aqui nesta tradição o convite é de conectarmos tanto com a mente como com o coração. Tradicionalmente no budismo tibetano, quando nos referimos à mente, temos um referencial um pouco diferente de muitas abordagens ocidentais - não há diferença entre a cabeça e o coração. Temos essa mescla de sabedoria e também um coração aberto, bondade. Portanto, toda essa ênfase em saber seu contexto e saber por que nos envolvemos com a meditação, é tão importante quanto qualquer uma das práticas.

Se pensarmos no budismo, geralmente você tem aquele estereótipo de um monge meditando ou fazendo algo nesse sentido. Pode parecer também algo mais cultural do que pessoal. Só que esses ensinamentos, a razão porque nos envolvemos no treinamento na mente, contêm também um aspecto pessoal, não somente cultural, porque o budismo em si se estabeleceu de um país para outro.

Ele começou na nobre terra da Índia, depois foi para todo mundo, passando também pelo Tibete, pela Tailândia, Sri Lanka, Nepal, toda a Ásia e aos poucos anos também se estabeleceu nos Estados Unidos e no Brasil. Também está em outros lugares, e me surpreendo em ver como o budismo vai se enraizando e espalhando cada vez mais. Por isso é muito importante compreender esse aspecto central que torna o budismo algo muito humano e não apenas cultural.

O budismo é em si uma prática de introspecção e que envolve o pensamento crítico (raciocínio) e também prática da compaixão e da bondade que vem dos primeiros ensinamentos proferidos pelo Buda.

O Buda ensinou primeiro sobre as quatro nobres verdades (ou as 4 realidades dos seres nobres) e assim as chamamos.

A primeira nobre verdade é o sofrimento. Isso não é pra desanimar ninguém. Muita gente escuta a palavra sofrimento e já começa a ver as imagens do sofrimento no budismo e fica desanimado, desencorajado, porque parece em muitas pinturas Budistas uma deidade feroz ali segurando o mundo.

 

E aí você vê o nascimento, a morte, doença, envelhecimento, e tudo isto parece por vezes um pouco depressivo, mas não deve ser, e no fundo esta é uma reflexão fundamental e muito importante para todos nós como seres humanos de que estamos sujeitos à doença e também sujeitos à morte. E não existe uma pessoa a qual nasceu e que não irá morrer, isto é fato. E por vezes vivemos uma vida como se estas coisas não fossem acontecer com a gente. Mesmo aceitando, em certa medida, que elas acontecem, a gente muitas vezes pode pensar “isto não vai acontecer conosco”. Quando somos mais jovens, cheios de confiança, vigor, pensar no envelhecimento e na morte é algo tão distante. Mas no momento em que você fica doente, ou se você fica com dor nas costas, imediatamente você sente o que é ser uma pessoa idosa, e imediatamente a força que tinha vai para o espaço. Isto é ótimo pois nos torna mais humildes e realistas da nossa condição humana.

 Esses ensinamentos sobre o sofrimento não têm intenção de deprimir ninguém. A ideia é abrir os nossos olhos - nos tirar, digamos assim, das nossas próprias suposições ou da nossa zona de conforto. E com isto, ver o mundo por uma nova perspectiva. À medida que nos abrimos simplesmente para essa ideia do sofrimento, de que existe sofrimento no mundo e de que esse sofrimento assume muitas formas diferentes, podemos, ao mesmo tempo, nos libertar de nossas pré-concepções pessoais e começarmos a abrir nossas mentes, como se fosse uma tela em branco.

A partir desta abertura, não serei influenciado pelo meu conforto, minha posição, meu cargo temporário na vida, pela minha comunidade ou sociedade, ou pelo gênero, raça, ou qualquer posição ou situação temporária que eu vivencio, ou até mesmo todas as coisas ao meu redor nesse momento, pois eu sei que tudo isso em algum momento vai acabar.

Aí sim, podemos começar de um lugar de abertura e frescor. É muito difícil fazer isso quando nos apegamos a algum tipo de zona de conforto pessoal. Então, esses ensinamentos, essa ênfase no sofrimento, sendo o primeiro ensinamento que o Buda já ofereceu, não tem a intenção de deprimir ninguém, como eu disse, mas sim nos tornar mais humildes e realistas. E isto nos permite que tenhamos espaço e que ocorra a contemplação - dar espaço para a autorreflexão. Além disso, esse espaço permite a conexão com outras pessoas também e a possibilidade de nos colocarmos no lugar de outras pessoas - vivenciarmos ou contemplarmos como as outras pessoas vivem no mundo. Então, nesse primeiro ensinamento, que é “Existe sofrimento no Mundo” e o sofrimento adquire várias formas diferentes. Mas também a forma de compreendermos o sofrimento também é relativa. Veja, por exemplo, eu gosto de comida apimentada. Mas nem todo mundo gosta de comida condimentada ou apimentada nos Estados Unidos. —Essas especiarias, a pimenta, não é um sabor, a meu ver. —A pimenta, esse tempero, traz no corpo uma reação biofísica. O apimentado não é um sabor. —A pimenta tem sabor, mas a picância em si não é o sabor. Apimentado é a reação aos químicos que estão nas sementes e essa substância química queima a pele. Então, não é um sabor, não é um gosto. O apimentado é essa sensação de dor misturada ao sabor. É por isso que os pássaros, por exemplo, podem comer a semente de papoula e não sentir o efeito da papoula, porque eles não têm a fisiologia - não têm as papilas gustativas ou a saliva que reage com essa semente, como nós temos. Por quê? Porque o corpo dos pássaros é diferente do nosso, mas para nós, nós temos um tipo diferente de biologia, uma condição diferente que faz com que a pimenta ou chili seja apimentado para nós. Isso é relevante para nós porque neste exemplo quando comemos pimenta ativamente estamos escolhendo a dor. Você gosta daquela sensação apimentada e ela traz uma certa dor. Você está escolhendo sentir dor na alimentação. Alguns de nós gostam da dor. Quem gosta de comida apimentada, por exemplo. Talvez gostemos da pimenta por causa da sensação, que é prazerosa e que libera, talvez, uma boa sensação de endorfina, ou porque culturalmente nos sentimos orgulhosos que conseguimos aguentar aquela pimenta, mas ainda assim não deixa de ser uma sensação dolorosa.

Significa que há uma diferença entre a dor física e a dor mental. Ninguém, na verdade, gosta de sentir a dor mental, mas talvez muitas vezes busquemos a dor física como no exemplo de irmos atrás do apimentado na nossa vida. Mas em todas as experiências que nós temos na vida e todo o sofrimento que nós vemos no mundo, quanto disso, na verdade, tem a ver com dor física?

Quanto do sofrimento humano é doloroso, talvez, seja um pouco distorcido. Talvez vocês tenham visto vídeos no Instagram, ou no YouTube, um pai ou uma mãe segurando o bebê e fingem estar ali, fazendo com que o bebê, na verdade, entre com a cara numa porta. Não é que acontece de verdade, mas na verdade eles só batem na porta e o bebê acha que foi na cabeça, mas não foi a cabeça, mas foi só o som. E o bebê acha que a cabeça dele bateu de verdade em algum lugar na porta e cai no chão e chora. E o pai e a mãe, vem correndo e fala, ah, coitadinho, como é que você tá? Você tá bem? E aí o bebê começa a chorar. Mas se ninguém vier falar nada, tipo “oh coitadinho do bebê e bebê nem percebe que ele caiu. Então aí o bebê não chora nessa situação.

Muitas reações e muita dor e sofrimento que nós vivenciamos como seres humanos não necessariamente têm a ver com a sensação física de dor. Têm mais a ver com a nossa reação mental e emocional ao percebermos que estamos em estado de dor. E isso muda muitas das nossas suposições, nossas premissas sobre como viver e como ter uma boa vida, ou objetos externos, ou uma dor física que realmente nos machuca ou nos prejudica. Mas se estivermos olhando no nível mais sutil, então vemos que as nossas reações à história do que aconteceu conosco, é aí, na verdade, que existe o sofrimento. Não é algo inerente ao mundo externo.

Essa é uma mudança radical na forma como realmente pensamos normalmente. Porque de onde vem o sofrimento? Em geral podemos dizer que o sofrimento acontece para nós, acontece conosco porque algo foi feito a nós. Mas, poderíamos dizer também, que existe sofrimento devido ao fato ou à forma como eu estou respondendo ao mundo ao meu redor. Isso pode parecer simplista demais. Isso significa que escolhemos sofrer? Ou significa que estamos sendo enganados, levados pelo sofrimento e que no fundo não há um sofrimento real para ser vivido? Não estamos falando isso. O que significa no fundo é que existe um nível de profundidade ao sofrimento, que podemos olhar além do que simplesmente acontece ao nosso redor. A causa do sofrimento é mais profunda do que simplesmente as circunstâncias externas.

Então, a segunda nobre verdade ensinada pelo Buda é a causa do sofrimento. A causa do sofrimento deve ser a causa de todo o sofrimento mental e emocional. Para simplificar um pouco isso, o Buda dividiu cinco reações emocionais negativas que nos trazem um sofrimento mental e emocional. Um deles é o apego (1), ou seja, fixação, cobiça, ou uma dependência, adição. Número dois é a agressão (2), ou ódio e raiva. Esse tipo de impulso de rejeitar ou repelir algo. Terceiro, nós temos, na verdade, estupidez (3), fusão, torpor. Esta incapacidade de pensar e de se mover. Na verdade, até essa teimosia de se salvar numa determinada situação. Número 4, temos a inveja ou o ciúme (4), o desejo, a cobiça, esse tipo de mistura de agressão também com a cobiça. E por último, temos a arrogância (5). Então essas são as cinco emoções negativas, que, de um modo geral, são a forma como nós experimentamos o sofrimento. Por exemplo, se estamos andando pela rua e alguém passa com uma bicicleta e nos atinge. Imediatamente surge raiva! —Puxa! Por que essa pessoa veio aqui e me atingiu? Por que não estava olhando melhor onde ia? Tem toda uma rejeição sobre esta pessoa! Imediatamente surge uma sensação de agressão. Há um apego ao meu corpo nessa hora, um apego às minhas roupas, que talvez tenham sido rasgadas ou estragadas durante o acidente, ou várias emoções negativas, mas de um modo geral, sempre existe um tipo de agressão, no sentido de repelir, rejeitar as coisas, e o apego de proteger, de apreciar, que está ligado também a essa cobiça.

Então, sempre é uma combinação quando temos um sofrimento mental ou emocional. Então esse é só um exemplo de como podemos identificar uma dessas cinco emoções negativas numa situação onde sentimos sofrimento. A causa do sofrimento, de um modo geral, também seria a causa dessas cinco emoções negativas. Então, qual é o elo comum entre apego, agressão, estupidez, ou teimosia, inveja e orgulho? O elo comum entre todos eles é a sensação do “eu”, é o nosso senso de identidade. Não é só ter uma identidade, mas de um modo habitual, nós estamos apreciando e protegendo esta identidade e tudo que é diferente da minha identidade, eu rejeito.

E qualquer coisa que tenha a ver com a minha identidade, qualquer coisa relacionada, nós queremos nutrir. Coisas que gostamos, as coisas que queremos, que desejamos para nós, queremos que façam parte de quem nós somos. Nós queremos que isso seja meu, quero possuir uma certa coisa, ou coisas que não gostamos, que não nos atraem, queremos rejeitar, queremos distância - longe de nós. Isso existe em muitos níveis diferentes. Pode ser no nível bem fundamental, por exemplo, a nossa ideia do “eu”, mas também se estende a nosso corpo e nosso “eu” não é nosso corpo. Eu não sei como isso soa em Português, mas eu estou com um garfo na mão e se alguém estiver se alimentando e deixa o garfo cair – você pode dizer diz “você enfiou o garfo na minha mão” - na minha mão - a mão que eu possuo, a minha mão.

Mas se alguém te empurra, você diria, ah, você me empurrou. Então, você é o corpo, sendo a mesma coisa, só que nesse caso, você é o dono do corpo. Então, essa sensação do eu pode ser bem flexível. Às vezes, é aquilo com que nos identificamos e, às vezes, nos sentimos o dono daquilo ao qual nos apegamos. Pode ser o corpo ou pode ser o dono do corpo. Isso também pode se ampliar para a nossa família, nossos amigos. Eles existem como parte da nossa identidade, ou nós achamos que temos um direito de posse, de certa forma, com os amigos, a família, minha família, os meus amigos. Eles fazem parte de mim, fazem parte de como eu penso nesse eu, esse ego.

Então, essa é a causa do sofrimento e não é uma acusação, não é que estamos aqui só usando as palavras de uma forma para responsabilizar uma pessoa pelo sofrimento no mundo. Não tem a ver com você ser responsável pelo sofrimento. Não estamos falando disso. No fundo, é só para mostrar que quando pensamos no sofrimento, nós estamos com um padrão de certas ideias, mas elas têm que ser examinadas mais profundamente. Toda vez que nós nos tornamos emocionalmente esgotados ou mentalmente esgotados, há uma razão para isso.

Essa razão pode ser rastreada até chegar a essas cinco emoções negativas e também esses distúrbios, digamos assim, essas preocupações emocionais e lá no fundo existe essa ideia do ego, essa questão de querer nutrir e proteger “mim, meu, eu”.  Então, o que podemos fazer com isso? Sempre que há uma causa existe um efeito, quando não há causa não há efeito. Se você remover a causa, não há base para que haja um efeito. Se você remover uma semente, não pode haver uma planta. Se você remover o apego ao senso de “eu”, já não podemos ter mais as cinco emoções negativas. Já não podemos ter mais esse sofrimento mental e emocional.

Portanto, não há mais um sofrimento neurótico. Talvez haja dor, da mesma forma, de que existem as pimentas, mas não é a mesma coisa que o sofrimento. Justamente porque existe uma causa do sofrimento, então deve haver um fim para o sofrimento.

E essa terceira nobre verdade ensinada pelo Buda deve haver uma cessação do sofrimento. Cessação significa o final do sofrimento. Então, como podemos remover essa causa do sofrimento?

Como podemos tirar essa base para essa dor mental ou emocional? A forma de fazer isso é expandindo o nosso cuidado, a preocupação que geralmente só reservamos para um pequeno “eu, pequeno ego”, e expandir para os outros de uma forma altruísta. Isso é diferente de exigir que as outras pessoas façam parte de quem eu sou. É diferente daquela questão de posse, de possessão que podemos ter em relação aos nossos familiares, amigos ou os objetos. Isso tem a ver com expandir o mesmo tipo de cuidado e carinho que geralmente reservamos para nós, expandir isso para os outros, expandir esse círculo, até que não haja mais nenhuma neurose particular e habitual ao redor dessa ideia de eu.

 

Quando isso acontece, já não há mais uma base, uma fundação para essas cinco emoções negativas, e nem para o sofrimento mental ou emocional. E não há mais uma base para a grande parte do sofrimento com que nos deparamos no mundo. Seria simplista demais dizer o seguinte, que se todo mundo na terra pudesse ser mais altruísta, não haveria mais conflitos mas se formos desmembrando isto no nível individual boa parte das questões e dos problemas que acontecem em nossa vida e boa parte dos conflitos entre as pessoas surgem de algum tipo de padrão de nutrir, de querer manter ou de rejeitar. Tudo vem disso e isso vem dessa ideia de “eu”.

Não importa como nos identifiquemos. Pode ser uma cultura, uma nação, uma tribo, uma família. Sempre que houver esse tipo de rejeição do outro e de apego a um “eu”, aí sempre haverá conflito. Pode acontecer no nível pessoal, ou no âmbito tribal, de espécie ou mundial. Existe uma tendência a termos uma lógica reducionista, que essa lógica reducionista é desmembrada ponto a ponto até que algo se torne insignificante, digamos assim. É o que eu estou tentando não fazer aqui. Eu não quero fazer isso, porque esses ensinamentos não têm a ver com ser niilista ou perder a esperança. A ideia é assumir a responsabilidade pessoal, não pelo sofrimento como um todo, mas assumir a responsabilidade pelo poder que cada indivíduo tem de trabalhar com sua própria mente, porque a mente, na verdade, é onde existem essas cinco emoções negativas - é na mente que existe o nosso ego. Porque o ego não se encontra no corpo. O ego não está, não é encontrado na mão. Às vezes você acha que você possui a mão, mas o ego não está na mão. Nem podemos encontrar o ego no cérebro. Você pode remover grande parte do cérebro e ainda assim ter um ego. Você está constantemente renovando neurônios, sinapses, no meio molecular o corpo muda a cada sete anos.

Então, onde está o eu? Porque o “eu” parece não mudar, mas ele muda. O “eu” é simplesmente uma forma de perspectiva e ainda assim é a causa de tantos problemas na nossa vida. Essa proteção neurótica desse “eu” traz esse sofrimento. Não quero reduzir todos os problemas ao ego, mas ao mesmo tempo nós queremos reconhecer e perceber como é potente. Quando vemos o que nós podemos fazer, quando nós nos soltamos dessa auto importância, quanto mais soltarmos essa auto importância no nível pessoal, mais liberdade teremos para existir nesse mundo como um ser humano, livre do sofrimento, livre dessas cinco emoções negativas, livre da dor neurótica e mental.

Bom, seria uma opção mais simples se fosse só uma escolha. O problema é que temos toda uma existência da vida pensando dessa forma. A nossa espécie já passou milhares de anos desenvolvendo essa perspectiva. E se você for budista, você pode considerar que isso já acontece há muitas e muitas e muitas vidas, não apenas essa vida, não só geneticamente, mas isso é algo que tem te acompanhado ao longo de todas as suas vidas. Vida após vida, nascimento após nascimento. É como se fosse uma perspectiva habitual, um hábito, uma forma habitual de pensar, sentir e existir. E onde existe um hábito, podemos desfazê-lo, só que é difícil desfazer um hábito. Os hábitos requerem um pouco de (re)treinamento.

Imagina que você tem um papel aqui e você vai enrolando. Imagina que você vai enrolando. Se você enrolar o papel, deixando assim, transforma num rolo como esse. Conseguem ver? Se você enrolar, ele vai ficar assim, curvo. Se você continuar enrolando, enrolando, enrolando, no final, o papel vai ficar ali numa espiral. Ele vai ficar enrolado toda vez. É assim a existência da nossa mente. Ela já foi enrolada tantas vezes nesse padrão que assumiu essa forma, esse formato. Então, nós temos que treinar a mente para voltar para um papel liso, reto. E como fazemos isso? Nós vamos esticando de volta, desenrolando, desenrolando. Mas não basta uma vez, temos que ir alisando, desenrolando de novo, de novo, de novo. E quanto mais vamos alisando, desenrolando, mas ele vai se tornando na sua forma original, plana. Mas isso requer tempo e requer esforço. E é aí que entram as quatro nobres verdades.

A quarta, especificamente, é o caminho para cessação do sofrimento, a aplicação do altruísmo, a aplicação de mindfulness, a aplicação da compaixão. Resumindo, a aplicação de toda filosofia budista, todo treinamento budista, os treinamentos, a meditação, etc. Todo caminho Budista é dedicado a desenrolar esta folha de papel para que o padrão habitual seja desfeito de novo, de novo e de novo e a mente torne-se liberta, livre dessa fixação habitual a si mesma, ou essa auto importância habitual. E é um hábito, porque fomos treinados para pensar dessa maneira, fomos treinados pelas circunstâncias, fomos treinados pela sociedade, ao longo de muitas vidas. Essa vozinha que diz, “ah, só cuide de você”. E de certa forma, se você só prestar atenção em você e não ligar para as outras pessoas, aí você será feliz. Mas onde a gente encontra isso? Onde vemos isso acontecer? Será que essa vozinha que fala, “ah, se eu ficar bem rico, eu vou ser feliz? Ou se eu tiver essas condições externas suficientes, eu serei feliz?” Mas não é isso que nós vemos na vida. Não vemos pessoas ricas, fabulosas, que estão felizes o tempo todo. Vemos muitas vezes essas pessoas atuando como se fossem felizes nas capas de revista, mas pessoalmente não parecem tão felizes, não, mesmo com pessoas poderosas, ter muito estresse associado com o poder. Por isso que nos EUA tem essa piada quando a pessoa se torna presidente rapidamente a pessoa fica com cabelo grisalho, da noite pro dia. Nos últimos dois presidentes eu não sei muito bem o que aconteceu. Acho que um já era totalmente grisalho, então, enfim, não deu pra perceber isso. Mas é muito estressante ter tanto poder.

Então, a quarta nobre verdade significa desfazer esses padrões mentais habituais, hábitos mentais. Então é aí que entra o treinamento da mente. Há muitos programas, guias para diferentes tipos de treinamento da mente. Por exemplo, como se libertar da dependência do alcoolismo, ou como se tornar mais saudável, mais ativo, ou como se treinar para tocar um instrumento como violino.

Há muitos tipos de treinamentos da mente por aí, e todos estão relacionados em desfazer hábitos. No fundo, é isso o treinamento da mente. Mas, da perspectiva budista, o treinamento da mente não é só uma questão de se ensinar a como desenvolver uma habilidade, mas é você poder se ensinar a desfazer essa auto importância num nível de base, num nível tão fundamental e profundo, capaz de remover a fundação, a base do sofrimento.

Então é algo muito específico nesse sentido. Não é treinar a mente só para ficar mais inteligente, não é treinar a mente com o objetivo de realizar uma meta externa. Os resultados são coisas que você sente, você vivencia. Claro, cada um é diferente. Então, não é que exista um passo a passo, um programa tão claro nesse sentido. Você pode dar a mesma aula para 100 pessoas de como tocar violino e por exemplo, talvez a maioria, se seguirem o plano, se comprometerem seriamente, talvez consigam aprender.

Mas há exceções. Algumas pessoas precisam de uma abordagem diferente. E é por isso, então, que falam que o Buda ofereceu 84 mil instruções diferentes sobre como trabalhar com a mente. Porque suponha que existam 84 mil tipos de pessoas - diferentes tipos de disposições no mundo, diferentes atitudes, diferentes formações. Generalizando, um certo ensinamento daria certo com algumas pessoas. Um certo tipo de meditação pode fazer sentido com um número suficiente de pessoas, mas não para todas.

Então é daí que vem o treinamento da mente, nesse nível mais fundamental para um praticante budista. Então, se alguém se interessa por meditação ou filosofia budista, treinamento budista, de um modo geral, é importante perceber que é daí que vem o budismo. Essa é a meta - essa é a base - essa é a inspiração original do treinamento da mente. A conquista não é externa, não estamos aprendendo a como adotar ou desenvolver uma habilidade, nem estamos em busca de realizar uma meta externa. Tem tudo a ver com como nos sentimos internamente. Talvez algumas pessoas precisem de menos tempo, outras mais tempo. É por isso que existe uma variedade tão grande de meditações e tantas formas diferentes de práticas budistas.

Porque quando a meta é tão pessoal, você precisa levar em conta diferentes tipos de pessoas. Levar em conta todas as educações, formações diferentes que as pessoas tiveram e obstáculos pessoais também que surgem quando nós nos “destreinamos”, quando nos desfazemos aqueles hábitos, aqueles padrões.

Enfim, eu quis passar essa aula de abertura, digamos assim, introdutória ao que eu vou falar agora, porque falar sobre treinamento da mente, ou entrar em diferentes aspectos do treinamento da mente ou nos pontos filosóficos, eu não posso deixar de falar primeiro sobre essa fundação, esse fundamento. Isso é importante porque se o treinamento da mente só tem a ver com ficar mais esperto, mais inteligente ou ser capaz de na verdade, brincar com a sua própria percepção, então talvez isso não tenha um propósito bom. É muito mais significativo poder ver como é a questão humana, não é só uma questão budista.

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