A paz é plural”, explica o pesquisador Wolfgang Dietrich

Conheci o professor Wolfgang Dietrich em 2012, quando iniciei meu mestrado em Estudos de Paz pela cátedra de paz da Unesco, na Áustria.

Na época, ele era o deten­tor dessa cadeira e uma referência mundial. O programa, que reunia alunos de diversas nacionalida­des, acontecia em um cenário bu­cólico nos Alpes austríacos.

Para uma brasileira, estar diante da magnitude das montanhas neva­das foi, em si, uma experiência de paz inesquecível.

Lembro-me do primeiro dia em que o professor nos recebeu. Nada de formalidades acadêmicas. Ele usava traje casual e, nos braços, levava seu violão.

De repente, começou a tocar e cantar uma bela canção de Deva Premal & Miten, cujo refrão dizia: “todos são bem-vindos aqui”. Parecia que eu estava entrando em uma dimensão paralela.

Na primeira aula, apre­sentou conteúdos profundos com sua metodologia dialógica, que nos convidava a ser participantes ativos nos processos reflexivos.

Conhecemos sua teoria chamada “Muitas Pazes”, a mais atual sobre o tema. Segundo ela, a paz é plural, relacional e multifacetada, pois, além de refletir a história de cada grupo social e sua cultura, ela se realiza a cada relação no momen­to presente.

Hoje é facilitador da pós-graduação EaD da Paz & Men­te Brasil e nos faz pensar sobre o assunto de um jeito inovador.

Quando surgiram os estu­dos de paz?

Eles surgiram após a Segunda Guerra Mundial como uma disci­plina acadêmica. Mas, no rescaldo de Hiroshima e Auschwitz, a neces­sidade de uma compreensão mais alargada das sociedades humanas tornou-se tão forte que algumas universidades fundaram os pri­meiros institutos de Estudos de Paz. Gradualmente, o mundo intei­ro seguiu o exemplo. O fato é que esse campo não pode basear-se nos métodos de uma única discipli­na tradicional. Por se tratar de um tema muito complexo, seu estudo requer um esforço transdisciplinar.

Qual a relevância desse campo nos dias atuais?

Os Estudos cada vez mais se mostram importantes na atuali­dade, pois nos dão o apoio neces­sário para termos relações mais construtivas conosco e com o mun­do, e isso é urgente.

Por que para ter paz não basta a ausência de guerra?

Muitas pessoas acreditam que paz é o oposto de guerra ou violência. Imagine como seria empobrecedor se ela fosse apenas isso? Se quiser­mos criar um mundo realmente pa­cífico, devemos começar com uma compreensão adequada sobre a essência da paz, não apenas como a ausência de algo. E isso requer pesquisa sistemática, isto é, ciên­cia. E ela só pode ser feita por seres humanos devidamente treinados. Agentes de paz bem preparados para atuar nesse terreno complexo.

O que são as “muitas pazes”?

A palavra paz só faz sentido se há um ser humano que a percebe, a sente e a experimenta. Entretanto, gramáticas europeias (espanhol e português) cunharam uma noção metafísica de uma paz que deriva de um único ser criador transcen­dental – metafísica aqui refere-se a toda imaginação, presunção ou ideia que não pode ser encontrada fisicamente na natureza. Porém, há muitos indícios concretos de que a linguagem é uma ferramen­ta de subjugação. A abordagem das “muitas pazes” afasta-se desse jogo e projeto de poder, pois define a paz dentro de seu contexto histó­rico, cultural, relacional e dinâmico nos sistemas sociais. Ou seja, de­mocratiza a sua noção e a entre­ga nas mãos de pessoas reais.

Afinal, qual é a causa de tantos confrontos e polaridades?

Isso tem relação com a forma como falamos e, portanto, como pensamos. Sempre que as pesso­as se sentem detentoras de uma “verdade” específica, tendem a fi­car teimosas, defendendo essa sua “verdade” e, no final, tornam-se violentas contra aqueles que não compartilham dessa visão, seja ela religiosa, ideológica ou cultural.

Já as “verdades” científicas trazem uma compreensão bem diferente, certo?

Elas são descobertas preliminares, discutíveis, as quais são válidas até que alguém as prove ao contrário com mais investigações. Uma única verdade fixa e definitiva, portanto, não pode existir. Porém, na lingua­gem convencional é possível facil­mente dizer: “Eu tenho a verdade, estou certo”. E não há um alerta semântico natural nas línguas eu­ropeias coloniais que nos corrija.

Como podemos nos tornar paz?

Todos nós somos capazes de sentir quando a experiência de paz está “no ar”. Isso é muito mais do que a mera ausência de violência ou con­flito. Mas o que é paz em sua es­sência? Eu não saberia lhe dar uma resposta única e definitiva, mas eu posso senti-la. Portanto, identifica­mos, fazemos e sentimos a paz por vezes em nossas relações, em con­textos e situações concretas. Isso se dá de formas muito peculiares, pes­soais e relacionais que tornam cada encontro e experiência únicos no aqui e agora. Contudo, não há garan­tia de que o modo de “pazear” de on­tem vai funcionar novamente hoje. Portanto, somos convidados a cada momento a criar novas maneiras de “pazear” nas relações.

Se a paz não exclui o conflito, qual é o lugar dele?

O conflito e a paz estão contidos na vida. Portanto, nesse sentido, paz é conflito e conflito é paz. Um ponto importante de refletir é que, mes­mo que você esteja sozinho, pode vivenciar um conflito consigo cada vez que tiver de tomar uma decisão. Conflitos estão presentes o tempo todo em nossas vidas. O melhor a fazer é abraçá-los como um belo in­dicador de estar vivo. Eles não são o problema, mas, sim, a forma como lidamos com eles.

Pode dar algumas dicas?

Transformar conflitos é diferente de resolvê-los. Resolver pode le­var ao ato violento, pois pressupõe colocar fim em uma situação desa­gradável com o intuito de eliminar um oponente ou cancelar uma si­tuação. Geralmente, esse tipo de resolução não é o fim da história, mas o início do próximo capítulo na espiral da loucura conflituosa, pois um episódio gera outro. Ao passo que transformar conflitos nos faz conscientes dos desconfor­tos, mas também capazes de atuar com calma em suas origens.

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